quinta-feira, 1 de março de 2012

Vontade de Potência ou Verdadeira Vontade

Palavras são animais traiçoeiros, que arrastam consigo toda a história de sua utilização pregressa. Ao escolhermos uma palavra corrente para designar um conceito novo, seus sentidos coloquiais permanecem na sombra, à espreita, e acabam engolindo o novo com a bocarra insaciável do familiar. Foi esse o risco em que Friedrich Nietzsche incorreu ao definir o conceito central de seu sistema - porque Nietzsche era um pensador sistemático, embora a forma de apresentação de suas idéias fosse assistemática - como Vontade de Potência (Wille zur Macht). Foi esse também o equívoco de Aleister Crowley quando, inspirado por Nietzsche, definiu o que há de mais fundamental no universo como Verdadeira Vontade (True Will).

Tanto um quanto o outro queriam fugir do preconceito substancialista que consiste em definir o Ser em estado puro, a realidade-em-si, como um sujeito sobrenatural, isto é, como uma entidade dotada de qualidades antropomórficas (como quando pensamos no Espírito impessoal como um espírito personalizado, uma cópia etérica de nós mesmos, geralmente com o requinte de dotá-lo de braços, pernas e cabeça). Em uma palavra, Nietzsche e Crowley (que provavelmente se inspirou em Nietzsche, embora o filósofo não apareça na bibliografia que ele indica em Magick in Theory and Practice) pretendiam combater a noção de que nossa essência espiritual fosse um ego semelhante ao que imaginamos carregar dentro de nossas cabeças, só que livre das limitações materiais deste último. A prova disso é que uma parte significativa dos aforismas de Nietzsche é uma análise dos processos por meio dos quais os preconceitos psicológicos e hábitos lingüísticos produzem a falsa crença em um ego, assim como Crowley definiu a Travessia do Abismo como o ponto em que o sujeito é estripado de si mesmo e as ilusões do ego lhe são arrancadas pela pressão exercida pelas forças impessoais das Sephiroth superiores, Binah e Hockmah.

Ao se tratar de um vocábulo derivado da linguagem psicológica, empurra o leitor inevitavelmente para a tentação de interpretar essa Vontade como a minha vontade, dessa forma reintroduzindo o ego através do ato mesmo pelo qual se pensava tê-lo exorcizado. Deus sabe o que os nazistas fizeram ao se apoderar da Vontade de Potência (com a cumplicidade canalha da irmã e do cunhado de Nietzsche, que não tiveram escrúpulos em torcer, mutilar e adulterar os escritos do filósofo para fazê-lo caber na perspectiva estúpida e canhestra do pintor de paredes austríaco). Deus sabe também quantas barbaridades egocêntricas e atitudes prepotentes já não invocaram em vão o santo nome de thelema, a palavra grega para "vontade" que está no coração do sistema de Crowley. Deus sabe - mas afinal, Deus está morto, esse Deus pensado de forma igualmente prepotente e egocêntrica, e não por acaso, uma vez que ele é ao mesmo tempo a matriz e a hipóstase desse sacrossanto eu pessoal, a quem atribuímos uma vontade também ela personalística.

A palavra VONTADE para ser bem compreendida, deve ser pensado em termos análogos aos do Brahman hindu, do Dharma budista ou do Tao chinês. Poderíamos dizer que se trata uma força, mas isso também seria uma metáfora que, se tem a vantagem inegável de ser impessoal, do outro já anda em franco processo de deterioração sob o efeito implacável da entropia semântica. Quantas vezes já não ouvimos uma riponga deslumbrada ou um neueigista descolado exclamarem que, "ah, Deus pra mim é uma energia", quando na verdade continuam a pensá-lo como um Papai do Céu tranqüilamente sentado sobre as nuvens - se duvidar, cofiando sua portentosa barba branca enquanto aspira o delicado perfume dos incensos queimados em Sua honra? E como se pode fazer alguma coisa em honra de Alguém se, precisamente, esse alguém não for imaginado como alguém?

À formulação final da Vontade de Potência pelo pensador alemão, não é difícil reconhecer esta última na paráfrase que Nietzsche faz das idéias do grego sobre o apeiron: "O ser originário assim denominado está acima do vir-a-ser e, justamente por isso, garante a eternidade e o curso ininterrupto do vir-a-ser. Essa unidade última naquele 'indeterminado', matriz de todas as coisas, por certo só pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que não pode ser dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que aí está, e poderia, por isso, ser tomada como equivalente à 'coisa-em-si' kantiana."

Para terminar, resta apenas mostrar onde é que a Verdadeira Vontade de Crowley se encaixaria nessa equação. Para isso, basta lembrar que a principal personificação da True Will nos escritos de Crowley é o deus egípcio Ra-Hoor-Khuit, um dos epítetos de Hórus, a respeito de quem ele escreve logo no capítulo 0 de Magick in Theory and Practice:


"O Espaço infinito é chamado a Deusa NUIT, e o ponto infinitamente pequeno e atômico, no entanto, Onipresente, é chamado de HADIT. Estes são imanifestos. Uma conjunção destes dois infinitos é chamada RA-HOOR-KHUIT, uma Unidade que inclui e dirige todas as coisas."

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